NOVA DEMOCRACIA E A ORLA



Início Anteriores Ano IV, nº 27, novembro de 2005 A orla vendida


A orla vendida

Igor Chaves e José Ricardo Prieto

As praias da cidade do Rio de Janeiro ainda são uma opção de lazer para os cariocas e os habitantes da baixada fluminense. Em que pese os gastos com transportes de toda a família, suas areias sempre estiveram abertas aos banhistas de todas as classes sociais. Se é certo que não há barreiras físicas que impeçam a chegada ao Atlântico, nem sempre a população proletária, em geral habitante dos subúrbios, foi bem acolhida na zona sul. Tradicionalmente, a burguesia carioca trata as praias de Copacabana, Ipanema e Barra com o zelo comparável a de um quintal seu: faz dele o que bem entende.

Foto: Arquivo pessoal



Antiga barraca de Cigarra, destruída pela Guarda Municipal

Hoje, grande parte daquela burguesia, empobrecida, assiste a tomada de Copacabana por grande contingente de trabalhadores, que chegam a alugar aposentos nas residências antes luxuosas da classe decadente. A minoria próspera da chamada "classe média" se aboletou em bairros como o Alto Leblon, Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes, onde igualmente tratam a praia como um anexo de seus condomínios.



Da praia do Leme, na Zona Sul, ao Pontal, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, são aproximadamente 34 Km intensamente frequentados nos feriados e fins de semana. A presença dessa massa é acompanhada de uma comercialização de produtos os mais variados — de bebidas a biquínis e bronzeadores. Essa demanda é atendida em boa medida pelos vendedores ambulantes, que abraçaram essa ocupação em grande parte devido ao desemprego.



Duras condições

Esses trabalhadores expõem-se diariamente ao sol e caminham quilômetros na areia para levar seus produtos onde o banhista esteja, seja ele carioca ou turista. Alguns deles trabalham agora em ponto fixo, alugando cadeiras e guarda-sóis, vendendo bebidas e petiscos, mas nunca perderam a condição de ambulantes, condição essa lembrada quase diariamente pela prefeitura e sua guarda municipal, que faz constantes razias* contra os barraqueiros, como são conhecidos. Além disso, todos os anos os ambulantes são obrigados a renovar a licença para trabalhar, o que equivale a dizer que estão na mão dos interesses políticos do prefeito e seus acólitos, que podem simplesmente cassar as licenças quando lhes for conveniente.



Some-se a isso a existência de quiosques, com melhor estrutura, mas que são insuficientes para atender a todos. Estes estão sujeitos a concessão de exploração de um espaço público por tempo determinado. Os quiosques vendem suas mercadorias a preços mais altos que os ambulantes e barraqueiros, o que já provoca uma divisão na clientela.



Claro, o comércio à beira-mar logo despertou interesses monopolísticos e a partir de 1999 ocorreu o que podemos chamar de uma "privatização da praia", uma vez que o contrato de concessão de toda a orla carioca foi entregue a João Barreto Pereira da Costa, proprietário da empresa Orla Rio, criada exclusivamente com este fim. Até 2.020 os proprietários de quiosques à beira mar só podem se abastecer com fornecedores indicados pela Orla Rio — bebidas, lanches e até água de coco têm fornecedores determinados — e estarão submetidos aos contratos e projetos dessa empresa.



Embalado pelos planos de dominar todo comércio da praia, Barreto concebeu o projeto que pretende substituir os acanhados quiosques do calçadão por outros maiores, que comportem depósito e banheiro, ausentes nos atuais. Se é inegável que a chegada dessa estrutura traria mais conforto aos comerciantes e clientes, é também evidente que os custos seriam muito altos para os atuais proprietários de pontos comerciais já que, para se manterem na orla, os atuais quiosqueiros teriam três opções: comprar o novo quiosque — cerca de R$ 1,5 milhão —, arrendar ou adquirir uma franquia de alguma rede de lojas. A solução, segundo o próprio Barreto, é trazer para a praia grandes redes de fast-food e restaurantes finos, numa óbvia demonstração de a quem esse projeto atende.



Corrupção presente

Essa mudança na estrutura do comércio na orla marítima do Rio de Janeiro está sendo materializada agora por acordos financeiros entre a Orla Rio e alguns diretores da Cooperativa dos Quiosqueiros (Coop-quiosque). Os diretores Rosana Reigota Lameirinhas — presidente —, Erisvaldo da Silva Lima, Gilberto Viera, Marcus Vinícius Balestieri e João Carlos Israel Lameirinhas fizeram um acordo com a Orla Rio, segundo o qual receberiam, durante 20 anos, uma propina mensal de 2.500 reais em troca do apoio à troca dos quiosques. Esse acordo foi feito, de papel passado, entre a Orla Rio e a Technobeach, outra empresa criada para intermediar o contrato entre Barreto e a cooperativa. Curiosamente, os sócios da Technobeach são os diretores acima citados.



Tudo está documentado e nas mãos de Júlio César Ribeiro da Costa, advogado do Orla Legal, movimento criado pelos quiosqueiros traídos pela Cooperativa.



— Providências judiciais já estão sendo tomadas pelo Orla Legal para anular o contrato, destituir a diretoria, cancelar essa fraudulenta cooperativa e processar criminalmente essas pessoas. Eles passaram atestado de corrupção — diz Júlio, como advogado e frequentador da praia desde criança.



A localidade escolhida para a construção do protótipo do projeto foi Copacabana. Por ser a praia mais importante da cidade, recebendo visitas de turistas do mundo todo, a remodelação começou com farta propaganda em frente ao Copacabana Palace, hotel mais tradicional da cidade.



Não bastasse o absurdo do projeto e a denúncia de corrupção, curiosamente, o único meio encontrado para deter a obra foi um embargo por ausência do Estudo de Impacto Ambiental, condição necessária, de acordo com a legislação para a construção em locais de preservação. A juíza Maria Alice Lyard, da 2ª Vara Federal do Rio de Janeiro, suspendeu as obras alegando que o projeto Orla Rio ofende os valores ambientais da comunidade. O prejuízo e virtual desemprego dos atuais quiosqueiros nem é mencionado.



Como acontece sempre nesses casos, os advogados da Orla Rio já entraram com recurso no Tribunal Regional Federal da 2a região, onde conheceu a simpatia do desembargador Paulo Espírito Santo. O argumento de maior peso é a realização do Pan-americano em 2007 e a necessidade de uma remodelação na cidade para receber os milhares de turistas e atletas que chegarão à cidade.



Afastar o povo



Obras do protótipo do quiosque milionário da Orla Rio

Porém, se ninguém duvida da "vocação" turística da cidade e da necessidade de receber bem os turistas, a população carioca também tem direito de usufruir do espaço entendido como público. Mais uma vez, embora não preveja a colocação de cercas na praia, a população empobrecida da cidade se verá obrigada a se afastar da praia por não poder consumir o que será vendido, nem se utilizar dos serviços ali prestados. Nesse ponto, a remodelação da orla atinge o seu ápice, porque com o desaparecimento dos proletários, os turistas gringos talvez a achem muito mais bonita.



— Eles querem privatizar um espaço público por conta dessa política de pegar o que é público e vender para as "pessoas". Isso é uma indecência. O João Barreto é da pior das espécies. Já chega dando as cartas. Vai comprando, dando ordem e todo mundo já sabe disso. E a prefeitura vem bancando, não porque é bom para cidade, mas para o bolso do César Maia, para financiar a campanha para a eleição do ano que vem. Isso deve ficar bem claro para todo mundo. A cidade não precisa disso e vive muito bem sem isso, com mais gente trabalhando — afirma Aristeu de Oliveira Barbosa, que trabalha há 26 anos em Copacabana, na altura da Rua Bolívar.



Não são só os quiosqueiros que estão resistindo à fúria expansionista dos empreendimentos do Orla Rio. Os ambulantes de praia, com sua maior representatividade nos barraqueiros fixos nas areias, que prestam serviços há décadas nas praias do Rio, enfrentam situação ainda pior. Além da exigência de renovação de licença, eles sofrem, com regularidade, repressões violentas da Guarda Municipal e da polícia.



Guarda invade praia

Aristeu é fotógrafo profissional e testemunha ocular das intensas lutas por dignidade dos barraqueiros e ambulantes. Atualmente o trabalho na praia é sua única fonte de renda. Para ele, depois da implantação do projeto Orla Rio, as dificuldades aumentaram com relação à Guarda Municipal e prefeitura.



As constantes ações da Guarda Municipal visam principalmente apreender materiais publicitários. Mas essa publicidade é feita nos instrumentos de trabalho dos barraqueiros, ou seja, nas cadeiras, guarda-sóis e caixas de isopor. A prática da Guarda/prefeitura é flagrantemente limitar o comércio, como quem autoriza a atividade, mas vai fechando o campo de ação até o insuportável, quando já não será mais possível sobreviver do comércio na praia.



— Nós achamos que a apreensão é uma coisa arbitrária. Até porque, para ter esse material na praia houve uma negociação das empresas dentro da própria prefeitura. Então, quando a prefeitura começou a fazer isso, ela quebrou contrato dela mesma com essas empresas. E nesse jogo de interesses, a gente acabou ficando no meio, entre a briga empresas /prefeitura. E a guarda municipal, quando vem, vem direcionada pela prefeitura, atropelando tudo. Não vem fiscal, não vem ninguém — declara Aristeu, que já sofreu ao longo dos anos, as diferentes formas da repressão da prefeitura.



Decreto covarde

No dia 14 de outubro último, o decreto 25.856, do prefeito César Maia, estreitou o funil por onde passam os ambulantes. A partir dessa data está proibida a fabricação ou cocção de churrasquinhos, queijos e salgados nas praias do Rio de Janeiro. Além de novo cadastro obrigatório, institui também um uniforme para os ambulantes "a tiracolo".



Personagem popular da praia de Copacabana, Máximo Ferreira, o "Cigarra", como gosta de ser chamado, está no local há 35 anos, no início vendendo biscoitos aos banhistas pelas areias e depois se estabelecendo — pelo menos, é o seu intento — em um ponto fixo. Era sambista e compôs para escolas de Samba.



Cigarra diz de boca cheia, e com certa razão, que eles são os verdadeiros "relações públicas da cidade". De uma pasta que traz sempre consigo, Cigarra saca vários documentos, matérias de jornal e bilhetes deixados por fregueses que vieram apenas uma vez ao Rio de Janeiro e tiveram o privilégio de serem servidos por ele, ou por outros que passaram a frequentar a sua barraca, tornando-se amigos do barraqueiro-sambista.



Mesmo com toda história, Cigarra sempre foi vítima do que ele chama de uma perseguição. Inúmeras vezes teve o material apreendido e a barraca destruída pela Guarda Municipal, sobretudo quando seu local de trabalho era uma barraca de bambu e palha, única, que teve que ser substituída pela tenda padrão exigida.



Morador da Baixada Fluminense, Cigarra passa a semana inteira na praia, para economizar. O garrote dos decretos municipais o atinge particularmente, porque os barraqueiros são proibidos também de armazenar produtos na praia e sua Kombi é constantemente autuada com o uso desse argumento.



— Na Zona-Norte da cidade, colocar barraca em lugares públicos é normal. Já aqui no centro turístico nacional, sofremos intensas ações da Guarda Municipal. Não podemos nem estacionar kombis com nossos materiais de trabalho que já dizem que é armazenamento. Isso é uma falta de respeito — desabafa Cigarra.



Os vendedores de praia, na sua maioria, são profissionais que se viram atirados à condição de semiproletários porque não conseguiram mais trabalho regulamentado. Esta situação remete ao "comércio informal" como um todo, que vem crescendo absurdamente, principalmente nas grandes cidades, sempre combatido pelo Estado. Claro, os camelôs não figuram nas estatísticas de desempregados, porque a mesma é feita conforme o número de "pessoas que procuram emprego".



É preciso combater

Aristeu, Cigarra e outros barraqueiros são organizadores de outro movimento, o Nova Orla, que está realizando uma série de reuniões visando formar um grupo forte e disposto a confrontar as ações repressivas da prefeitura e as investidas da Orla Rio.



— A associação que devia nos representar passou a ser como uma extensão do governo. Ela deveria existir para conquistar aquilo que não conseguimos através dos órgãos governamentais. Se é para cumprir decreto nós não precisamos de associação; nós precisamos dela para nos defender da prefeitura. Então, quando a prefeitura apreende teu material, se você fala alguma coisa é desacato de autoridade. Se você reage, você é levado para delegacia. E a associação ainda diz que é porque o decreto não foi cumprido. Nós imaginamos, nessa nova organização, que primeiro deveria haver mobilização da categoria e construir uma estrutura jurídica para responder as ilegalidades da prefeitura — Encerra Aristeu, que é um dos diretores eleitos da Ascolpra (Associação do comércio legalizado de praia), mas discorda da inação da instituição, que inclusive já foi assediada com a mesma proposta aceita pela Cooperativa dos Quiosqueiros.



Apesar de a ameaça da troca de quiosques ser apenas aos atuais quiosqueiros, tramita na Câmara dos vereadores da cidade projeto de lei no 162/2005, de autoria do vereador Carlos Caiado que prevê, no seu artigo 6o a instalação de barracas na areia por parte dos quiosqueiros. Como já existe outra lei que estabelece uma distância de 30 a 50 metros para cada barraca, eis que o círculo se fecha e tudo se combina para a expulsão dos atuais barraqueiros da orla carioca.





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*Razia - malefícios, depredações, ruína contra valores materiais ou espirituais, praticados por grupo contra grupo ou coletividade; expressão marcial, de origem italiana (razzia): ataque fulminante, arrazante.

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